Um Violino e o Natal

25 dezembro, 2006
Sou totalmente encantada por violinos, mesmo sem ter um conhecimento musical consistente. Eu apenas os sinto, mais que aos outros instrumentos, talvez por existir magia em num violino.

Hoje, véspera de Natal, transcrevo uma crônica de Affonso Romano de Sant’Anna, que conta a história de um Stradivarius doado por D. Pedro II ao músico Dilemar Alves da Costa, em 1859.
Com a sensibilidade do poeta, Affonso usa essa história para falar da inutilidade de partes exiladas, que só alcançam sentido quando montadas, integrando o todo.

É o espírito do Natal: o significado da irmandade, da união, o resgate da condição humana.


O Violino Silencioso
Affonso Romano de Sant’Anna


Por causa do romance "O Xangô de Baker Street", de Jô Soares, a imprensa descobriu a história de um outro violino Stradivarius, também doado pelo Imperador Pedro II, não a uma possível amante, mas a uma pessoa real, o rabequista Dilemar Alves da Costa – que, em 1859, impressionou tanto o nosso monarca, que este resolveu incentivar a vocação do jovem músico dando-lhe logo o melhor violino possível. O fato é fabuloso.

E por isso, em cima dele é possível fabular. Estava Pedro II percorrendo a costa brasileira de navio. Acontece que, entre Salvador e Recife, fez-se apresentar uma orquestra diante dos representantes da corte. Nela, estava o jovem Dilemar, que por seu talento despertou a proteção artística do imperador. Cumprindo promessa imperial, mais tarde foi-lhe entregue um Stradivarius. Sonhava certamente Pedro II que do sertão bruto pudesse aparecer um outro Paganini. O violino, no entanto, seguiu estranho destino. Ainda existe e hoje está nas mãos do historiador Milton Teixeira, que mora aqui no Rio. Mas dele nunca saiu som algum.

Por quê? Isto é o mais intrigante. O violino existe, mas permanece desmontado há 143 anos, tal como foi entregue ao rabequista no século passado. Diz-se que era costume entregar assim o instrumento. Caberia ao usuário montá-lo e dele tirar as incríveis sonoridades que só ele tem.

Acontece que Dilemar não montou as peças do presente que lhe foi dado. Descaso? Medo? Respeito totêmico pelo objeto? Diz a repórter Nayse López que não apenas ele não articulou as partes do instrumento, como as doou assim mesmo, todas separadas, ao seu filho João Francisco Costa, que, por sua vez, também passou a vida inteira contemplando aquelas peças desarticuladas sem se interessar em montá-las, até que acabou por assim passá-las a sua filha Zilah Alice Costa, que hoje tem 80 anos e nunca as reuniu.

Como naquela teoria das bolas, inventada por Machado de Assis, segundo a qual a vida parece esses jogos de sinuca ou bilhar em que as bolas vão batendo umas nas outras em busca de sentido, dona Zilah, não sabendo o que fazer com aquele instrumento desarticulado, deu-o de presente a uma tia de Milton Teixeira. Este agora está tentando saber da casa inglesa de leilões Sotheby's qual o valor da peça, que assim tem inscrita em si o nome do genial fabricante, que revolucionou a arte do violino, e a data de sua fabricação: "Antonius Stradivarius Cremonensis Faciebat Anno 1736".

Considerando que Stradivarius morreu em 1737, teria sido este um dos últimos instrumentos que ele fabricou na cidade de Cremona, que com seu artesanato também imortalizou. Seus dois filhos, Francisco e Ornobono, embora construíssem também violinos, jamais conseguiram imitar o pai.

A mim me fascina outro dado nessa história toda, que tive que recapitular para que o leitor aqui chegasse comigo. Há nesse episódio algo mais que a simples narrativa de um violino desmantelado que vai passando de geração em geração. Há aí algo mais interessante do que a questão de saber quanto vale o instrumento. E até mesmo algo mais do que exemplificar como era generoso o imperador quando se tratava de patrocinar jovens talentos.
Parece-me que o que está passando de mão em mão, de geração em geração, é um segredo, um enigma que nenhum dos envolvidos na sequência conseguiu ainda decifrar. E já que a história implica na presença de um monarca, de um servo artista e de heranças, poderia até fabular que era uma vez um rei que um dia deu a um de seus servos um instrumento, que soaria de forma maravilhosa caso ele conseguisse montar suas peças. E a promessa do rei era a de que aquele que no seu reino conseguisse tal façanha seria rico e herdaria a fama pela posteridade afora. O instrumento, então, começou a passar de mão em mão, de geração em geração, até que um dia...

Não sei se esse dia ocorrerá. Toca-me, especialmente, que as pessoas em geral, rabequistas ou não, tenham em suas mãos as peças de um enigma e não consigam ou não se interessem em articulá-las. Algo parecido com aquela parábola dos talentos de que fala a Bíblia. As peças lhes são dadas, o tempo lhes é dado e, no entanto, não articulam o sentido do todo disperso nas partes.

Lembro-me de ter dito que o sentido da vida, seja do filósofo, do poeta ou do homem comum, era reunir o sentido disperso nas coisas. Só os que davam sentido às partes entreviam o todo. Acho que isto é válido para os rabequistas e os herdeiros de ontem e de hoje.

De sua solidão, as partes do violino, desarticuladas, olham o mundo ao redor. As cravelhas, o braço, o tampo, a crina, o estandarte, a presilha, enfim, todas as peças, até chegar naquela que sintomaticamente se chama alma e que existe concretamente. E ninguém para reuni-las, exiladas umas das outras, elas não produzem o sentido da totalidade.

Isto pode acontecer com a existência de uma pessoa, de uma geração ou com a vida de uma comunidade e até mesmo de um país inteiro. Se alguém conseguir reunir as partes exiladas em seu inútil e fragmentado silêncio poderá, quem sabe, tirar a sonoridade do conjunto e assim resgatar a música adormecida dentro e fora de nós.



O violino da foto é um Stradivarius, conhecido como The Messiah, Le Messie, ou Salabue, que se encontra no Museum Ashmolean de Oxford, Inglaterra. Sua história é muito interessante, quase uma lenda, pois consta que nunca foi tocado, e seu estado de conservação é tão perfeito que parece ter sido feito recentemente, embora esteja datado de 1716. Seu valor é estimado, segundo a Forbes, em $20 milhões.

Os violinos Stradivarius são os melhores e mais famosos violinos existentes. Foram construidos pelo luthier Antonio Stradivari, italiano, que viveu entre 1648 e 1737. Stradivari fazia instrumentos de cordas: violinos, harpas, violas, violões, violoncelos, contra-baixos, e desenvolveu técnica tão perfeita que até hoje não foi totalmente desvendada.

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