Dia de chuva

16 novembro, 2007
Como é bom um dia de chuva em pleno feriado no Rio de Janeiro. Num dia assim o silêncio é um luxo a ser desfrutado. O carioca, em sua maioria, adora calor, barulho e muita bagunça. A cidade se agita na proporção que o calor aumenta, porém quando chove e esfria um pouco o povo se recolhe.

Nasci no Rio, e aqui tenho vivido. A cidade é linda, geograficamente falando, principalmente se vista do alto, mas de perto é feia, suja e cheira mal. Pessoas mal-educadas infestam todos os cantos, perturbando o sossego de alguns poucos que insistem em ser civilizados. Crianças histéricas, querendo chamar a atenção aos gritos, filhos de pais ausentes, criados por empregadas, entregues à própria sorte. É impressionante como fazem filho sem qualquer estrutura familiar que permita criá-los de maneira sensata. E os outros que aturem...

Fiz de tudo para sair daqui e ir viver em uma cidade serrana, mas nada deu certo, parece um carma que tenho que cumprir. Eu quero muito viver o que me resta cercada de verde, um riachinho próximo, clima ameno, longe, bem longe dessa neurose urbana. Ainda não desisti desse sonho.

O texto que segue expressa perfeitamente o que eu sinto. Se talento eu tivesse poderia tê-lo escrito, sem mudar uma vírgula sequer. Foi publicado no jornal O Globo faz algum tempo.

Hostil à inteligência
Berilo Vargas


O Rio é uma cidade surda. É também uma cidade rouca. E uma cidade do barulho, no sentido próprio e no figurado.

Não poderia ser de outra forma. Em ruas, casas, apartamentos, restaurantes, botequins, qualquer um é livre para produzir todos os ruídos que quiser. Pode abrir a janela e gritar até perder a voz; debruçar-se sobre a buzina do carro até esgotar a bateria; reunir os amigos para um churrasco no terraço – ou na varanda – e ouvir pagode e ópera, alta madrugada, até ensurdecer o quarteirão; martelar, serrar, soltar fogos, estalar o chicote a qualquer hora do dia ou da noite; cantar na rua ressaltando a desafinação com um alto-falante. Tudo lhe será permitido, como parte da bagagem constitucional de direitos individuais inalienáveis.

Assim, aos gritos e golpes de marreta – e com a ajuda desinteressada de representantes locais livremente eleitos pelo voto – a grande metrópole carioca tornou-se o paraíso da mais absoluta liberdade sonora. Só é um inferno para aqueles que violam essa convenção informal de permissividade coletiva e fazem questão de dormir, ler, estudar, conversar, ver um filme em casa humanamente. Esses eternos deslocados constituem uma minoria verdadeiramente silenciosa – tão silenciosa que jamais será ouvida ou levada em conta.

Na prática, não existem mecanismos sociais de controle de som, ou instrumentos legais para obrigar alguém a baixar o volume. Nesse particular pelo menos, os códigos de conduta, as normas de etiqueta pertencem à nossa pré-história. Pior do que isso: foram invertidos. Pedir a alguém que faça menos barulho, por favor, passou a ser insulto de extrema gravidade. Justifica qualquer reação violenta. E quem se atreve a cometer essa afronta aos costumes liberais modernos fica malvisto e expõe-se a abusos.

A vítima de um ataque sonoro logo se dará conta de que está desprotegida. Não pode contar com a ajuda do poder público. Se ligar para o 190, ouvirá algo assim: “Dê seu nome e endereço, para mandarmos uma viatura. Os policiais acompanharão o senhor para tentar resolver isso da melhor maneira”, dirá a telefonista. Mesmo acompanhado por uma guarnição da Polícia Militar, bem armada e apta a lidar com indivíduos irascíveis em situações extremas, pode não ser boa idéia. Lembre-se, quem está procurando encrenca é você e não o vizinho barulhento. Ele quer apenas se divertir. Além disso, um diálogo com uma fonte de barulho tende a ser um monólogo, onde ela esbraveja e você fica surdo e é melhor que também fique mudo.

Se tentar uma abordagem mais leve, e pedir ajuda à Polícia Civil, será orientado a procurar o Disque-Barulho, da Secretaria municipal do Meio Ambiente. Ali será gentilmente informado de que o Disque-Barulho só atende a denúncias relativas a pontos fixos. Se o seu vizinho for móvel, além de barulhento, não se qualifica.

Dizia Schopenhauer – com aquela argúcia e sabedoria dos filósofos que dispensam a banalidade da comprovação científica – que a tolerância ao barulho está na razão inversa do tamanho da inteligência. Quanto mais tapado, mais indiferente ao ruído. Para o indivíduo inteligente, o estalar de um chicote distante é sempre uma chicotada na própria carne. Porque a violência sonora interrompe rudemente aquele constante monólogo interior que Shakespeare chamava memoravelmente de sweet silent thought, o suave e silencioso ato de pensar.

Se o teorema do grande pessimista alemão vale não só para indivíduos, mas também para comunidades e povos, pobres de nós. Está tudo explicado.

comentários

  1. Betty: dia de chuva no Rio..que saudades de td de melhor que vivi ai...Bjus de bom fimd e semana pra vc.

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  2. Betty, você disse tudo sobre o Rio e o colunista também. Eu morro de saudades, mas a vida aqui em Guarapari é menos estressante. Esse feriadão está uma delícia porque está chovendo o tempo todo, então não há turistas fazendo barulho. Um lindo final de semana para você. Beijocas

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  3. Meme para a senhorita no meu blog, post de 15 de Novembro..

    Gracto^^

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  4. Betty querida,

    Eu entendo seu sentimento em relação ao Rio, como você sabe, moro tão próximo daí, mas cá entre nós, já não sinto a mínima vontade de descer a serra...Ia com muita frequência, os amigos aí são muitos, sou muito cobrada pela ausência, mas há uns 04 anos a ida com frequência já não existe mais, pois não consigo ficar em um lugar que me transmita um pouquinho que seja de sossego...E infelizmente, me sinto assim no Rio: Perto de uma bomba, prestes a explodir...
    Triste isso, não é mesmo?
    Seu post está lindo, assim como a coluna que você publicou, ambos muito bem colocados...
    Beijo carinhoso, Cris

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  5. Betty, seu texto traduz o quê venho sentindo em relação ao Rio. Sou de Brasília e moro aqui há mais de 12 anos. O Rio em que vivemos está aquém da propaganda que algumas pessoas alienadas em relação à própria cidade fazem; assim, colaboram cada vez mais para que esta cidade se torne terra de ninguém.Infelizmente é o que ocorre. Ah, também, penso em sair daqui.

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